Voz: à procura da identidade! — entre corpo, som e silêncio
- Catarina Carvalho
- 21 de set.
- 4 min de leitura
Atualizado: 21 de set.
A voz é uma das expressões mais complexas do ser humano. Muito para além da linguagem verbal, é vibração, corpo em movimento, emoção transformada em som. Cada emissão vocal revela não apenas uma mensagem, mas também uma história, uma identidade. É por isso que, no campo da psicoterapia corporal, a voz ocupa um lugar central: ela denuncia bloqueios, dá forma a silêncios e pode tornar-se veículo de integração e cura.
O nascimento da voz: de onde falamos?
A voz nasce no corpo.
Respiração, vibração, músculos, emoções — tudo se encontra nesse fenómeno aparentemente simples de falar ou cantar. David Boadella (1987), fundador da Biossíntese, já tinha mostrado como a respiração e os bloqueios somáticos influenciam directamente a forma como nos expressamos.
Na pedagogia vocal, Kristin Linklater (1976) reforçou essa ideia ao propor a libertação da “voz natural”, que só emerge quando se removem tensões acumuladas no corpo. Mais recentemente, Paparo (2022) demonstrou, através do Método Feldenkrais, que o aumento da consciência corporal em cantores conduz a uma voz mais autêntica e menos condicionada por hábitos de tensão.
Assim, a questão “de onde falamos?” deixa de ser apenas fisiológica. A voz é expressão de presença: fala-se a partir do corpo vivido, com a sua história e as suas marcas.
Silêncios impostos: quando a identidade é negada
Nem sempre a voz encontra espaço para se manifestar. Há silêncios que não são escolhas, mas imposições — externas, como normas sociais, repressão cultural ou censura; ou internas, como vergonha, medo ou trauma.
No modelo Benenzon, de Musicoterapia, a noção de Identidade Sonora (ISO) (Benenzon, 1981) ajuda a compreender este fenómeno: cada pessoa transporta um conjunto de sons e ritmos únicos que a caracterizam. Quando a voz é reprimida, o ISO fragmenta-se e a comunicação autêntica fica comprometida.
Myerscough (2023), em investigação sobre (in)visibilidade e (in)audibilidade em musicoterapia, relatou casos em que clientes descreviam literalmente a garganta a “fechar-se” quando tentavam cantar. O silêncio, nestes contextos, não é ausência de som: é expressão corporal de um bloqueio identitário.
Peter Levine (1997), no campo da terapia somática, demonstrou que experiências traumáticas ficam muitas vezes inscritas no corpo. O bloqueio da voz pode ser lido como uma dessas inscrições.
Reaprender a falar: memória, território e resistência
Se o silêncio pode ser imposto, a voz pode ser reconquistada. Reaprender a falar é, neste sentido, um processo terapêutico e identitário.
Diane Austin (1996), através da Vocal Psychotherapy, mostrou que a improvisação vocal permite aceder a memórias emocionais profundas e libertar afectos retidos. A voz cantada, quando usada em contexto terapêutico, torna-se ponte entre o inconsciente e o consciente, entre corpo e emoção.
Estudos mais recentes, como o de Forbes, Goopy e Krause (2024), analisaram como professores de canto constroem e mantêm a sua identidade musical ao longo da vida. Concluíram que a voz e o canto são actos de continuidade e resistência identitária — espaços onde o sujeito se reconhece e se afirma.
Também a investigação clínica reforça esta visão. Terapias específicas de voz, como a Resonant Voice Therapy em nódulos vocais (Saltürk, et al., 2019) ou abordagens combinadas em disfonia de tensão muscular (Sielska-Badurek, et al., 2017), mostraram benefícios não apenas na qualidade vocal, mas também na autoestima e no bem-estar psicológico.
A voz, quando reaprendida, torna-se território de memória e de resistência — um lugar onde se reinscreve a identidade.
Considerações finais
A voz é mais do que uma ferramenta de comunicação: é corpo em vibração, memória em movimento, identidade em ato. Trabalhar a voz em psicoterapia corporal é trabalhar com silêncios e expressões, com bloqueios e libertações, com a coragem de existir diante do outro.
Quando uma pessoa encontra a sua voz, encontra-se a si própria. Por isso, em cada processo terapêutico, a voz não é apenas som: é potência, é presença, é vida que se afirma.
Referências bibliográficas
Austin, D. E. (1996). Vocal psychotherapy: The therapeutic use of the singing voice within a music therapy relationship. Jessica Kingsley Publishers.
Benenzon, R. (1981). Teoría de la musicoterapia. Paidós.
Boadella, D. (1987). Biosynthesis: Body, breath and being. Routledge & Kegan Paul.
Forbes, M., Goopy, J., & Krause, A. E. (2024). Becoming singular: Musical identity construction and maintenance through the lens of identity process theory. Psychology of Music. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/03057356241267863
Levine, P. (1997). Waking the tiger: Healing trauma. North Atlantic Books.
Linklater, K. (1976). Freeing the natural voice. Drama Book Specialists.
Myerscough, F. (2023). Reflections on (in)visibility and (in)audibility in music therapy: Who? How? To whom? Music Therapy Perspectives. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/13594575221137778
Paparo, S. A. (2022). Singing with awareness: A phenomenology of singers’ experience with the Feldenkrais Method. Research Studies in Music Education, 44(3), 373–390. https://doi.org/10.1177/1321103X211020642
Saltürk, Z., Özdemir, E., Sari, H., Keten, S., Kumral, T. L., Berkiten, G., Tutar, B., & Uyar, Y. (2019). Assessment of Resonant Voice Therapy in the treatment of vocal fold nodules. Journal of Voice, 33(5), 810.e1–810.e4. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2018.04.012
Sielska-Badurek, E., Osuch-Wójcikiewicz, E., Sobol, M., Kazanecka, E., Rzepakowska, A., & Niemczyk, K. (2017). Combined functional voice therapy in singers with muscle tension dysphonia in singing. Journal of Voice, 31(4), 509.e23–509.e31. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.10.026

Catarina Lourenço de Carvalho
Psicóloga (CP OPP 5357), com especialidade avançada em Psicoterapia Corporal Somática em Biossíntese.
Especialização em Psicossomática e Epigenética; Trauma e Neurociência; Bodynamic Analysis (níveis Foundation e Reorienting Birth); Terapia de Casal.
Musicoterapia (Mestrado), integrando uma forte ligação artística — é violinista e contralto.
Formadora, Professora e Supervisora Clínica.
Consultas para jovens, adultos e casais em sessões presenciais (Lisboa e Estoril) e online.
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