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O Mito da Presença Autêntica: uma proposta em Psicoterapia Corporal Somática

  • Foto do escritor: Catarina Carvalho
    Catarina Carvalho
  • 20 de jul.
  • 5 min de leitura

Todo o corpo carrega mitos: os que o moldaram e os que o libertam. Ao longo da história da Psicoterapia, diferentes narrativas explicaram o sofrimento humano e o modo como ele se expressa no corpo. Este artigo propõe um percurso relacional e cronológico por três mitos fundamentais: o Mito Individual do Neurótico, de Jacques Lacan; o Mito do Normal, de Gabor Maté; e, por fim, o Mito da Presença Autêntica, uma proposta da autora inspirada na Psicoterapia Corporal Somática em Biossíntese.



O mito como expressão simbólica na psicologia junguiana

Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, o mito é compreendido como uma linguagem simbólica do inconsciente coletivo — uma forma arquetípica de organizar as experiências humanas universais. Longe de serem ilusões ou narrativas ultrapassadas, os mitos representam verdades psíquicas profundas, revelando tensões fundamentais da alma humana. Segundo Jung (1964), os mitos ajudam a integrar conteúdos inconscientes à consciência, funcionando como pontes entre o Ego e o Self. Assim, em vez de se opor à ciência ou à razão, o mito oferece um saber simbólico que sustenta os processos de transformação pessoal e coletiva.


Neste artigo, o mito é retomado como recurso clínico e relacional, capaz de estruturar o sofrimento e apontar caminhos de integração — não no sentido de um modelo rígido, mas como campo vivo de sentido, enraizado no corpo e nas suas relações.



Mito Individual do Neurótico: o corpo marcado pela falta

Na perspectiva lacaniana, o sujeito neurótico estrutura-se a partir de uma fantasia inconsciente que organiza o desejo em torno da falta. A neurose funciona como uma narrativa protetora, mas que também aprisiona o sujeito em repetições e sintomas. O corpo, neste cenário, é o palco de conflitos simbólicos: inibições, tensões, rigidez e desconexão com o sentir.


O contacto consigo mesmo torna-se fragmentado, a conexão com o outro é mediada por defesas, e o contexto familiar e cultural reforça padrões que mantêm o sofrimento em circuito fechado.



Mito do Normal: o corpo moldado pela adaptação

Gabor Maté amplia o olhar para o impacto da cultura na saúde emocional. Segundo ele, vivemos numa sociedade que valoriza a produtividade, a repressão emocional e a desconexão. A adaptação a este modelo gera sofrimento físico e psíquico, que frequentemente é normalizado ou patologizado.


O sujeito adoece ao se afastar da sua verdade interna. O contacto com o corpo é interrompido, a conexão emocional é suprimida, e o contexto social valida formas de estar que ignoram as necessidades mais profundas.


A urgência de um novo olhar: o corpo como campo relacional

Entre os mitos da neurose e da normalidade, o corpo contemporâneo anseia por escuta. Não basta entender o sintoma como mensagem inconsciente ou reação ao ambiente: é necessário considerar o corpo como campo vivo de relação. A Biossíntese, abordagem criada por David Boadella, oferece uma perspectiva integradora a partir de três dimensões fundamentais: contexto, conexão e contacto.


Contacto é a experiência direta com o sentir, o aqui e agora do corpo. É presença corporificada — consigo, com o outro e com o mundo. Na clínica, significa acolher o ritmo, respeitar os limites e permitir o movimento verdadeiro, autêntico.

Conexão é a possibilidade de aprofundar o vínculo. Surge da escuta empática, da segurança relacional e da abertura mútua. É neste espaço de encontro que a cura se torna possível — quando há presença, confiança e afeto, o corpo relaxa e a expressão flui.

Contexto é o campo que sustenta o contacto e a conexão. Inclui a história pessoal, familiar e sociocultural — os fios invisíveis que moldam o sentir, o pensar e o agir. O corpo é enraizado nesse chão, carregando memórias que, quando reconhecidas, podem ser transformadas.



O Mito da Presença Autêntica: um corpo que se escuta e se expressa

A partir desses fundamentos, proponho o Mito da Presença Autêntica: uma nova narrativa terapêutica que integra corpo, emoção e consciência. Em vez de evitar a falta ou esconder o desconforto sob a aparência do normal, a presença autêntica acolhe a experiência tal como é — com verdade, responsividade e coerência interna.

“A presença autêntica não elimina a falta, mas acolhe a sua ressonância no corpo, integrando-a como parte viva da experiência terapêutica e abrindo espaço para uma existência mais coerente e corporificada.”

Este mito não idealiza a cura como ausência de dor e sim como reencontro com o Ser Inteiro. Na clínica, traduz-se por uma escuta corporificada, por práticas que facilitam a regulação somática, por relações terapêuticas que oferecem base segura para reconstruir o sentido de si.



Integração final: três mitos em diálogo

Tabela – Três Mitos em Diálogo (Carvalho, 2025)
Tabela – Três Mitos em Diálogo (Carvalho, 2025)

A tabela sintetiza os principais eixos de três mitos que moldam a compreensão do corpo e do sofrimento na psicoterapia contemporânea. O Mito Individual do Neurótico, de Lacan, foca-se na fantasia e na falta como estrutura psíquica, levando à repetição sintomática. O Mito do Normal, proposto por Maté, denuncia a adaptação tóxica à cultura, resultando num corpo desconectado e adoecido. Já o Mito da Presença Autêntica, proposto neste artigo, valoriza a presença relacional e o corpo como campo de contacto e expressão, promovendo uma integração mais ampla, vital e corporificada. A comparação evidencia a transição de um olhar simbólico e clínico-cultural para uma abordagem terapêutica relacional e somática.



Conclusão: o Mito como Bússola

Ao revisitar o mito individual do neurótico, do normal e da presença autêntica sob diferentes prismas — psicanalítico, clínico-cultural, somático-relacional e simbólico — a autora reconhece que cada um deles expressa modos de ser e sofrer no mundo. O Mito da Presença Autêntica, proposto neste artigo, não nega os anteriores, mas acolhe os seus conflitos para os integrar numa prática terapêutica mais ampla, corporificada (embodied) e coerente com a complexidade humana.


Na linguagem junguiana, este mito encarna um movimento de individuação: não procura suprimir a sombra ou ignorar o sofrimento, mas reconhecê-los como partes vivas da jornada do sujeito em direção ao Ser Inteiro. É o corpo que sonha, que comunica, que sofre e que cura. E é nele — no seu gesto, no seu silêncio e na sua expressão — que o mito se torna presença viva e terapêutica.


Como símbolo corporificado, o Mito da Presença Autêntica oferece uma nova ética do cuidado que reconhece o corpo como campo de verdade, — em que o contacto se torna espaço de escuta, a conexão vínculo reparador, e o contexto chão que sustenta a transformação.



Referências

Boadella, D. (1997). Lifestreams: An introduction to Biosynthesis. Routledge.

Jung, C. G. (1964). Man and His Symbols. Dell.

Lacan, J. (1980). O Mito Individual do Neurótico. Pelas Bandas da Psicanálise/2. Assírio e Alvim.

Maté, G. (2022). The Myth of Normal: Trauma, Illness, and Healing in a Toxic Culture. Avery.

Carvalho, C. L. (2025). O mito da presença autêntica: uma proposta em psicoterapia corporal somática. Artigo inédito.


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Catarina Lourenço de Carvalho

Psicóloga (CP OPP 5357), com especialidade avançada em Psicoterapia Corporal Somática em Biossíntese.

Especialização em Psicossomática, Epigenética, Trauma, Neurociência e Terapia de Casal.

Musicoterapeuta, Formadora e Supervisora Clínica.


Consultas para jovens, adultos e casais em sessões presenciais (Lisboa e Estoril) e online.


📱 WhatsApp: (+351) 964 775 677

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